Aplicação da Lei do Superendividamento enfrenta desafios

22 de julho de 2025
Conjur

A Lei nº 14.181/2021, que modificou o CDC para tratar do superendividamento, marca um progresso legislativo essencial na defesa da dignidade humana e na harmonização das relações de consumo no Brasil. Diante do endividamento familiar crescente, que em junho de 2025 atingiu 78,2% (dados da CNC) , essa lei é crucial para quebrar o ciclo de dívidas e reintegrar o consumidor social e economicamente.

O fenômeno do superendividamento é causado por fatores como a precarização do trabalho, custo de vida elevado, crédito com juros altos e os efeitos da Covid-19. Assim, criar leis para o superendividamento é uma resposta institucional importante à crise do consumo e à perda da capacidade de pagamento dos consumidores vulneráveis.

Contudo, a efetividade da aplicação da Lei do Superendividamento tem enfrentado desafios interpretativos, notadamente na aferição do “mínimo existencial”. Embora o Decreto nº 11.567/2023 tenha fixado o valor de R$ 600 para este conceito, a jurisprudência e a doutrina apontam para a necessidade de uma análise contextualizada, sob pena de esvaziamento do propósito protetivo da lei. O presente estudo propõe analisar criticamente a aplicação do critério do mínimo existencial, argumentando por sua interpretação à luz dos princípios constitucionais e da teleologia da Lei do Superendividamento.

Conceito de superendividamento e centralidade do mínimo existencial

A Lei nº 14.181/2021 adicionou ao CDC o artigo 54-A, § 1º, que define superendividamento como a incapacidade de um consumidor de boa-fé quitar suas dívidas de consumo sem afetar seu mínimo existencial. Esta definição, segundo a Nota Técnica CIJDF 12/2024, diferencia o superendividado do inadimplente comum, oferecendo um tratamento mais favorável para reinseri-lo economicamente e evitar a insolvência civil. A boa-fé do consumidor é essencial, presumida se não houver endividamento intencional sem capacidade de pagamento (Sampaio, 2018).

O ponto nevrálgico reside na interpretação do “mínimo existencial”, cuja regulamentação pelo Decreto nº 11.550/2022 (e suas alterações) tem gerado controvérsias. É importante destacar que o mínimo existencial não possui definição única na legislação brasileira, sendo frequentemente vinculado à ideia de condições básicas para uma vida digna, conforme os fundamentos do Estado democrático de direito (Porto, 2015). A Constituição de 1988, ao estabelecer como objetivos da República a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (artigo 3º, III), impõe ao legislador e ao Judiciário a obrigação de garantir que nenhum cidadão seja reduzido a uma situação de indignidade em virtude de dívidas de consumo.

Insuficiência do parâmetro fixo e crítica doutrinária

A Nota Técnica CIJDF 12/2024 aponta que “a fixação de valores ínfimos pelo Executivo ao regulamentar a matéria é alvo de críticas, pois ao estabelecer quantias aquém do custo de vida do cidadão brasileiro, o decreto acabaria por colocar em risco as premissas da própria lei”. Tal valor, conforme verificado pela mesma nota técnica, nem sequer é suficiente para adquirir uma cesta básica em Brasília (R$ 756,03 em fevereiro de 2025 e R$ 782,65 em março de 2025).

A doutrina especializada, inclusive autores citados na nota técnica, defende uma interpretação que transcende a literalidade do Decreto. Sarlet (2007) e Torres (1989), precursores do debate sobre o mínimo existencial no Brasil, já indicavam que o conceito está intrinsecamente ligado à garantia de uma existência digna. Claudia Lima Marques (2025) argumenta que a regulamentação do mínimo existencial não poderia “relativizar os princípios da ‘dignidade da pessoa humana’ e do ‘não retrocesso’ em matéria de direitos sociais”.

O Enunciado 6 das Jornadas de Direito Civil do CJF, também referenciado na nota técnica, define o mínimo existencial como os “rendimentos mínimos destinados aos gastos com a subsistência digna do superendividado e de sua família, que lhe permitam prover necessidades vitais e despesas cotidianas, em especial com alimentação, habitação, vestuário, saúde e higiene”. Essas abordagens reforçam a ideia de que a quantificação do mínimo existencial deve ser flexível, atenta às variações regionais de custo de vida e à condição socioeconômica de cada consumidor (Marques, 2023).

A rigidez numérica, nesse sentido, fragiliza o próprio núcleo essencial dos direitos fundamentais. A nota técnica corrobora que o mínimo existencial “não se confunde com o valor mínimo para a manutenção do padrão de vida da parte antes (ou durante) o superendividamento”, mas sim com a “subsistência digna”. Tal distinção é relevante, pois evita que a lei seja utilizada para manter estilos de vida insustentáveis, mas garante os meios necessários à dignidade humana.

Jurisprudência que afasta rigidez do mínimo existencial do decreto

A interpretação teleológica e principiológica do mínimo existencial encontra eco em decisões judiciais de diversos tribunais estaduais, que têm se posicionado de forma a afastar a aplicação estanque do valor previsto no decreto. O TJ-SP, por exemplo, na Apelação Cível: 10065157820248260362, afastou a rigidez do valor do decreto ao consignar que o “valor estabelecido pelo Decreto 11.150/22 (R$ 6000) que deve ser encarado como mero referencial, sendo necessária a análise de cada caso de acordo com as provas carreadas aos autos”.

Essa decisão, inclusive, reconheceu a condição de superendividamento de autor cuja renda líquida, após descontos, mostrava-se inferior aos gastos essenciais, anulando a sentença de improcedência e determinando a instauração da segunda fase do procedimento de repactuação das dívidas.

Corroborando tal entendimento, o TJ-PE, na Apelação Cível: 00014373220248172380, estabeleceu que “o parâmetro de R$ 600,00 mensais previsto no Decreto nº 11.150/2022 para o mínimo existencial deve ser interpretado de forma contextualizada, considerando as condições concretas do consumidor, e não de forma absoluta e estanque”. A decisão do TJ-PE, ademais, aponta que a “extinção prematura da ação sem oportunizar à parte autora a emenda da inicial para melhor demonstrar seus gastos essenciais configura violação ao princípio da não surpresa, consagrado nos artigos 9º e 10 do CPC, bem como ao disposto no artigo 321 do mesmo diploma”. Outrossim, o TJ-MG na Apelação Cível: 50073216920248130471, ao analisar a condição de superendividamento, enfatizou que “o conceito de superendividamento abrange não apenas o comprometimento da renda acima de determinado percentual, mas também as condições subjetivas e conjunturais do consumidor, exigindo análise probatória para caracterização e solução”.

A referida decisão cassou uma sentença de indeferimento da inicial, justamente por violar o devido processo legal e os princípios da inafastabilidade da jurisdição e da dignidade da pessoa humana, ao não oportunizar o contraditório e a produção de provas para apuração da condição de superendividado. Esses julgados demonstram uma tendência de interpretação que valoriza a realidade do consumidor, em detrimento de uma aplicação puramente formalista da regulamentação.

Cumulação de pedidos e natureza do processo de superendividamento

A fixação do valor de R$ 600 para o mínimo existencial, conforme disposto no decreto, evidencia uma interpretação restritiva da complexa realidade do superendividamento. Essa quantificação monetária tende a simplificar uma situação que exige uma análise mais abrangente, considerando não apenas a mera revisão contratual, mas o conjunto das condições financeiras do consumidor (Sampaio, 2025).

A lei, por sua vez, reconhece a especificidade do superendividamento ao prever, no artigo 104-B do CDC, um mecanismo próprio que permite a revisão e integração dos contratos existentes, bem como a repactuação das dívidas remanescentes mediante a elaboração de um plano judicial compulsório (Marques, 2022).

Tal previsão legal destaca a importância de um tratamento diferenciado e estruturado para a superação do endividamento excessivo, indo além da simples correção contratual e contemplando a real possibilidade de reestruturação financeira do devedor, visando à preservação do mínimo existencial e à efetiva proteção da dignidade da pessoa humana.

A Nota Técnica CIJDF 12/2024, ao abordar a “Cumulação de pedidos: repactuação de dívidas e revisão de cláusulas contratuais”, reconhece a existência de “fortes argumentos contra e a favor da permissão de cumulação dos pedidos de decretação de nulidade de cláusulas contratuais juntamente com a repactuação de dívidas”. Embora haja divergência, a própria nota técnica cita precedentes que admitem essa cumulação.

A revisão e a repactuação são, portanto, fases intrínsecas ao procedimento, não havendo óbice à cumulação de pedidos que visem a adequar as condições dos contratos à real capacidade de pagamento do consumidor superendividado. O TJ-SP (Apelação Cível: 10065157820248260362) inclusive reconhece o “regramento que beneficia não somente o consumidor, mas os credores em geral”, ao prever a repactuação das dívidas. Essa interpretação mais ampla do artigo 104-B do CDC está alinhada com os princípios da efetividade, da economia processual e da boa-fé objetiva, que devem nortear a atuação do Poder Judiciário na tutela dos consumidores em situação de vulnerabilidade.

Conclusão

A Lei do Superendividamento, Lei nº 14.181/2021, representa um marco na proteção do consumidor e na busca por uma sociedade mais justa e equitativa. Para que seus objetivos sejam plenamente alcançados, é imperativo que a interpretação do conceito de “mínimo existencial” vá além da literalidade do Decreto nº 11.567/2023, que fixa o valor de R$ 600.

Conforme amplamente demonstrado pela doutrina especializada, como Claudia Lima Marques, e pelos precedentes do TJ-SP (Apelação Cível: 10065157820248260362), TJ-PE (Apelação Cível: 00014373220248172380) e TJ-MG (Apelação Cível: 50073216920248130471), o mínimo existencial deve ser encarado como um referencial que exige análise contextualizada das condições concretas de cada consumidor, de modo a preservar sua subsistência digna e os direitos fundamentais inerentes à sua condição humana.

A aplicação de um patamar fixo e genérico, desvinculado da realidade social e econômica, não apenas frustra a teleologia da Lei nº 14.181/2021, mas também pode configurar ofensa a princípios constitucionais basilares, como a dignidade da pessoa humana e a proibição do retrocesso social.

A uniformização da jurisprudência é crucial para a segurança jurídica e a eficácia da norma. Isso assegura que o superendividamento promova efetivamente a cidadania financeira. A reanálise de processos, considerando o mínimo existencial e a natureza do superendividamento com base em fatos, e não em valores taxativos, é fundamental para a justiça e para o cumprimento dos objetivos legais.

Compartilhe nas redes sociais

Facebook Twitter Linkedin
Voltar para a listagem de notícias
Fechar

Política de Cookies

Seção 1 - O que faremos com esta informação?

Esta Política de Cookies explica o que são cookies e como os usamos. Você deve ler esta política para entender o que são cookies, como os usamos, os tipos de cookies que usamos, ou seja, as informações que coletamos usando cookies e como essas informações são usadas e como controlar as preferências de cookies. Para mais informações sobre como usamos, armazenamos e mantemos seus dados pessoais seguros, consulte nossa Política de Privacidade. Você pode, a qualquer momento, alterar ou retirar seu consentimento da Declaração de Cookies em nosso site.Saiba mais sobre quem somos, como você pode entrar em contato conosco e como processamos dados pessoais em nossa Política de Privacidade. Seu consentimento se aplica aos seguintes domínios: palmiericonsultoria.com.br

Seção 2 - Coleta de dados

Coletamos os dados do usuário conforme ele nos fornece, de forma direta ou indireta, no acesso e uso dos sites, aplicativos e serviços prestados. Utilizamos Cookies e identificadores anônimos para controle de audiência, navegação, segurança e publicidade, sendo que o usuário concorda com essa utilização ao aceitar essa Política de Privacidade.

Seção 3 - Consentimento

Como vocês obtêm meu consentimento? Quando você fornece informações pessoais como nome, telefone e endereço, para completar: uma solicitação, enviar formulário de contato, cadastrar em nossos sistemas ou procurar um contador. Após a realização de ações entendemos que você está de acordo com a coleta de dados para serem utilizados pela nossa empresa. Se pedimos por suas informações pessoais por uma razão secundária, como marketing, vamos lhe pedir diretamente por seu consentimento, ou lhe fornecer a oportunidade de dizer não. E caso você queira retirar seu consentimento, como proceder? Se após você nos fornecer seus dados, você mudar de ideia, você pode retirar o seu consentimento para que possamos entrar em contato, para a coleção de dados contínua, uso ou divulgação de suas informações, a qualquer momento, entrando em contato conosco.

Seção 4 - Divulgação

Podemos divulgar suas informações pessoais caso sejamos obrigados pela lei para fazê-lo ou se você violar nossos Termos de Serviço.

Seção 5 - Serviços de terceiros

No geral, os fornecedores terceirizados usados por nós irão apenas coletar, usar e divulgar suas informações na medida do necessário para permitir que eles realizem os serviços que eles nos fornecem. Entretanto, certos fornecedores de serviços terceirizados, tais como gateways de pagamento e outros processadores de transação de pagamento, têm suas próprias políticas de privacidade com respeito à informação que somos obrigados a fornecer para eles de suas transações relacionadas com compras. Para esses fornecedores, recomendamos que você leia suas políticas de privacidade para que você possa entender a maneira na qual suas informações pessoais serão usadas por esses fornecedores. Em particular, lembre-se que certos fornecedores podem ser localizados em ou possuir instalações que são localizadas em jurisdições diferentes que você ou nós. Assim, se você quer continuar com uma transação que envolve os serviços de um fornecedor de serviço terceirizado, então suas informações podem tornar-se sujeitas às leis da(s) jurisdição(ões) nas quais o fornecedor de serviço ou suas instalações estão localizados. Como um exemplo, se você está localizado no Canadá e sua transação é processada por um gateway de pagamento localizado nos Estados Unidos, então suas informações pessoais usadas para completar aquela transação podem estar sujeitas a divulgação sob a legislação dos Estados Unidos, incluindo o Ato Patriota. Uma vez que você deixe o site da nossa loja ou seja redirecionado para um aplicativo ou site de terceiros, você não será mais regido por essa Política de Privacidade ou pelos Termos de Serviço do nosso site. Quando você clica em links em nosso site, eles podem lhe direcionar para fora do mesmo. Não somos responsáveis pelas práticas de privacidade de outros sites e lhe incentivamos a ler as declarações de privacidade deles.

Seção 6 - Segurança

Para proteger suas informações pessoais, tomamos precauções razoáveis e seguimos as melhores práticas da indústria para nos certificar que elas não serão perdidas inadequadamente, usurpadas, acessadas, divulgadas, alteradas ou destruídas.

Seção 7 - Alterações para essa política de privacidade

Reservamos o direito de modificar essa política de privacidade a qualquer momento, então por favor, revise-a com frequência. Alterações e esclarecimentos vão surtir efeito imediatamente após sua publicação no site. Se fizermos alterações de materiais para essa política, iremos notificá-lo aqui que eles foram atualizados, para que você tenha ciência sobre quais informações coletamos, como as usamos, e sob que circunstâncias, se alguma, usamos e/ou divulgamos elas. Se nosso site for adquirido ou fundido com outra empresa, suas informações podem ser transferidas para os novos proprietários para que possamos continuar a vender produtos e serviços para você